Editorial

 

M U D A N Ç A S

 

Podem me prender Podem me bater Podem até deixar-me sem comer

 

Que eu não mudo de opinião Daqui do morro eu não saio não Daqui do morro eu não saio não (Zé Keti)

 

A sempre velha e sempre nova “Mudanças”. Tida como necessária e aplaudida por todos, praticada por poucos. Esta verdade nos fez, ao acharmos este escrito dos idos de 2002, tomarmos coragem para publicá-lo sem modificações ou atu-alizações, pois a nosso ver pouco perdeu de seu conteúdo.

 

A vinheta introdutória revela um tipo de consciência intransitiva e um apego às formas de vida mais elementares que plasmam determinadas relações dos homens entre si e com seus esforços materiais de existência.

 

Paralelamente carrega uma insubmissão, uma “desobediência civil” que, funcionando como contraponto à passividade, atua paradoxalmente como um pêndulo de necessidades geradoras de novas formas de existir, acicatando o poder formal e o oficialismo das relações tradicionais, removendo-os de seus supostos equilíbrios– pretensa permanência de relações equalizadas.

 

Destas contradições inunda-se a história, tomando a realidade de assalto e fazendo incidir sobre ela como resultan-te, as relações concretas estabelecidas em espiral de (re) criações do presente (ponte entre o passado e o futuro) que, apesar de cíclicos, nunca se apresentam iguais.

Negar as mudanças é negar a essência da vida: só a mutabilidade é permanente.

 

Inter – interdisci – interdiscipli – interdisciplinaridade, uma palavra difícil de dizer provavelmente seja ainda mais difícil a sua prática.

Nem tanto.

O difícil é romper um modo de pensar que está na nossa cabeça há séculos.

 

Quando as modernas ciências começaram a se desenvolver em um tempo de “mares nunca dantes navegados”, conhe-cer era navegar em um oceano de mistérios e riscos. E, para navegar com segurança, foi preciso que cada marujo cuidasse de seu trabalho e buscasse conhecer o máximo sobre ele, sem olhar para os lados.

 

Com o tempo, ficou óbvio que, para vencer travessias mais difíceis, era preciso reconhecer que, na verdade, todos estavam no mesmo barco.

 

A interdisciplinaridade começa aí: no entendimento de que a complexidade dos mundos físico e social requer que as disciplinas se articulem, superando a fragmentação e o distanciamento, para que se possa conhecer mais e melhor.

 

No trabalho especializado, cada um sabe sobre uma parte do fazer, mas é totalmente alheio ao que os outros sabem e fazem. O resultado é uma alienação em que nós e os outros somos sempre “alienígenas”.

 

Superá-la é necessário, não só para que sejamos flexíveis para lidarmos com as rápidas mudanças nos processos pro-dutivos, mas para que o conhecimento científico tenha maior abrangência e significação.

 

Em uma educação humanística, considerando-se suas implicações econômicas, políticas e culturais, a desalienação é a reconstrução do homem, agora não mais fragmentado.

 

A interdisciplinaridade – conceito que resume a prática de interação entre os componentes do currículo - é uma estratégia pedagógica que assegura aos alunos a compreensão dos fenômenos naturais e sociais de forma contextualizada.

 

Ao remetermos o conhecimento aos contextos naturais e sociais de onde foi extraído e onde é aplicado devemos fornecer as ferramentas mentais para a compreensão e ação. E, como o mundo físico e social é enorme e os fenômenos acontecem de forma “indisciplinada”, é preciso construir essas ferramentas – as competências – partindo de uma interação dos conhecimentos específicos. Assim ao se organizar o currículo por áreas de conhecimento, não se está dizendo que o futuro professor será um gênio que domine todos os conhecimentos de uma área.

 

O importante é que ele saiba que deverá entender e praticar a relação de sua disciplina com as da mesma área e com todo o currículo.

O ensino no Brasil está crescendo e a duras penas, mudando.

E a dificuldade está no mudar.

 

Para atender as necessidades de aprendizagem permanente dos alunos, devemos definir um modelo de ensino, as-sentado sobre a flexibilidade, a diversidade e a contextualização que possa oferecer oportunidade de avanço além da escolarização e a inserção no mercado de trabalho.

 

Para pensarmos um ensino que responda a estas necessidades, faz-se necessário pensar o papel da aquisição dos saberes socialmente construídos e dos esquemas de mobilização desses saberes.

 

É preciso superar o falso dilema de centrar a aprendizagem, e, portanto o currículo nos conhecimentos ou nas com-petências.

 

A instituição deve oferecer os conhecimentos produzidos pela humanidade no seu processo histórico, os caminhos para ter acesso a eles e aos que vierem a ser produzidos e as competências para realizá-los e colocá-los em ação.

 

Fomos buscar na epistemologia genética de Jean Piaget e na lingüística de Noan Chomsky as referências básicas sobre o conceito de competência utilizado por nós. Uma concepção básica que reúne entre os que formulam suas teorias a partir da noção de que o indivíduo tem a capacidade inata de: construir o conhecimento, de construí-lo na interação com o mundo,

de referenciá-lo e significá-lo social e culturalmente, de mobilizar este conhecimento frente a novas situações de forma criativa, reconstruindo no desempenho as possibilidades que as competências permitem.

 

As competências são modalidades estruturais da inteligência, ou melhor, ações e operações que utilizamos para es-tabelecer relações com e entre objetos, situações, fenômenos e pessoas que desejamos conhecer.

As habilidades decorrem das competências adquiridas e referem-se ao plano imediato do saber fazer.

Portanto, construir um currículo por competências não pressupõe abandonar a transmissão dos conhecimentos ou a construção de novos conhecimentos; ao contrário, estes processos são indissociáveis na sua construção.

 

A diferença que se estabelece nesta proposição curricular é que o centro do currículo e, portanto, da prática peda-gógica será não a transmissão dos saberes, mas seu processo de construção, apropriação e mobilização.

 

Falamos de um curso integrador, cuja referência é o que está fora de seus muros; que reconhece a multiplicidade de agentes e fontes de informação apropriando-se deles, integrando-os ao seu fazer; que integre os tempos, utilizando-se do passado para articular o futuro no presente.

 

Um projeto político-pedagógico, que assume um currículo baseado nas competências pressupõe a centralidade do aluno, portanto, da aprendizagem; um foco na qualidade e na autonomia, uma prática pedagógica diversificada, um curso diferenciado, uma pedagogia ativa.

 

Isto implica em uma mudança do papel da instituição e, consequentemente, de um novo ofício docente, cujo objetivo passa a ser o de fazer aprender.

 

Projetar vem do latim e quer dizer: “lançar para diante”. É disso que se fala quando se diz que o curso deve elaborar o seu projeto, pois ele deve propiciar as condições para que cumpra a finalidade de educar os jovens, preparando-os para a vida.

Constitui-se de um conjunto de definições doutrinárias e de estratégias de ação.

 

Às vezes, confunde-se projeto pedagógico com plano de ação, trabalho ou roteiro, algo que detalha passo a passo o que será feito.

O projeto é um mapa de navegação.

Permite seguir viagem, mas por mais que fixe a rota não prevê todos os acidentes de percurso, devendo ser flexível o suficiente para permitir correções, tanto na sua dimensão pedagógica quanto na administrativa.

 

A dimensão pedagógica é central. Define uma concepção e um desenho curricular, ou seja, a relação de competências e conhecimentos a serem construídos e as estratégias de aprendizagem e de avaliação: por que, o que, como aprender e como avaliar.

 

Longe de ser “uma grade curricular” com disciplinas, cargas horárias definidas e pré-requisitos, estabelece o papel de cada componente curricular na formação do aluno prevendo tempos e espaços para seu desenvolvimento.

 

O importante, portanto é o projeto-pedagógico do curso em torno do qual ele constrói suas estratégias de sobrevi-vência.

 

Isto implica inverter a relação que existe na maioria das instituições, nas quais os aspectos administrativos e financeiros ao invés de apoiar o projeto pedagógico se sobrepõem a eles, atrapalhando a sua implementação e otimização.

Como vimos a função do projeto pedagógico é a de projetar a instituição “para diante”, assim, ele nunca estará pronto.

É um processo em permanente construção, é uma tarefa inacabada.

Resta-nos lembrar alguns avanços obtidos a partir de uma situação dramática: o sistema de autorização e creden-ciamento de cursos, além de burocratizados, levou a formação de cartéis, com reservas territoriais de mercado e consti-tuição de cartórios com poder de emitir diplomas de ensino superior, por prazo ilimitado e sem avaliação de qualidade. O

 

CFE foi fechado em 1994, acusado publicamente de favorecimento e tráfico de influência. A expansão do ensino superior de 1980 a 1994 foi limitada, de qualidade questionável e as autorizações obedeciam a critérios eminentemente políticos.

 

A partir dessa situação que consideramos caótica, criou-se o CNE, no qual depositamos nossas esperanças de uma atuação honesta e compromissada com a qualidade do ensino.

 

O MEC, com o controvertido Exame Nacional de Cursos, mais conhecido como Provão, colocou o dedo na ferida. Foi criado com o objetivo de fazer com que, a partir da reiterada reprovação na avaliação, houvesse automática suspensão do reconhecimento do curso, o que levaria ao fechamento, caso as deficiências não fossem sanadas. Valeu, porém, o bom senso: como não se tinha uma massa crítica de informações sobre as avaliações que permitisse esse automatismo, seria irresponsável, a nosso ver, determinar esse fechamento com uma ou duas avaliações.

 

Porém, com 6 (seis) anos de avaliação, o provão está consolidado como um dos instrumentos de aferição da qualidade de ensino, juntamente com a avaliação das condições de oferta dos cursos de graduação, onde se verifica: infra-estrutura, corpo docente e projeto pedagógico.

O sistema de ensino superior, apesar dos avanços, ainda apresenta diferenças de qualidade gritantes.

 

Sabemos, contudo que os profissionais, especificamente os cirurgiões-dentistas, nunca discutiram tanto o ensino como nos tempos atuais.

Parece estar havendo uma conscientização de que antes de sermos dentistas somos educadores e como tal devemos agir.

A educação se tornou uma prioridade assumida por governos de todos os países. O grande desafio que a sociedade impõe aos sistemas educacionais é o de mudanças, tornar o ensino-aprendizagem uma experiência de toda a vida para todos e para cada um dos cidadãos.

 

“Podem me prender Podem me bater Que eu não mudo de opinião”

 

Professor Cresus Vinicius Depes de Gouvêa é membro da Comissão de Ensino da ABENO, membro da Comissão de

 

Especialistas INEP/SESu, membro da Comissão Consultiva do ARCOSUL/MERCOSUL, Coordenador do Doutorado em Odontologia e Diretor da Faculdade de Odontologia/UFF.